50 anos do caso Herzog e a necessidade de uma perícia criminal autônoma

Em 2025, ao marcarmos meio século da morte do jornalista Vladimir Herzog, precisamos refletir sobre um pilar da justiça que ainda permanece frágil em nosso sistema: a independência da perícia criminal.
Naquele fatídico 25 de outubro de 1975, Herzog se apresentou voluntariamente ao DOI-CODI, órgão de repressão da ditadura militar. Horas depois, seu corpo foi encontrado enforcado na cela. A versão oficial, respaldada por um laudo assinado por dois peritos e confirmada por dois médicos legistas, alegava suicídio. Segundo eles, Herzog estaria em “suspensão incompleta e sustido pelo pescoço, através de uma cinta de tecido verde”.
Olhando hoje para esse caso, vemos claramente a farsa técnica montada a serviço da opressão. Naquela época, as forças policiais foram cooptadas pelo regime ditatorial. O caso Herzog nos mostra, de forma dolorosa, como a perícia, quando amarrada a interesses institucionais, pode ser usada para esconder a verdade. Só em 2013, 38 anos após o crime, a família finalmente recebeu um novo atestado de óbito reconhecendo a verdadeira causa da morte: “lesões e maus-tratos sofridos durante o interrogatório nas dependências do DOI-Codi”.
Em 2018, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou nosso país por negligência na investigação, destacando como os peritos falharam em realizar um exame adequado e imparcial. Esta condenação internacional nos mostra que não estamos falando de um problema do passado, mas de uma falha que persiste até hoje.
Quando a perícia não é autônoma, cria-se um conflito que compromete a imparcialidade científica. Em um sistema acusatório, como prevê nossa Constituição, é essencial que a produção da prova técnica esteja protegida de influências da autoridade que investiga. Quando quem investiga também controla as provas técnicas, o princípio do contraditório fica comprometido em sua essência.
Ainda hoje, peritos enfrentam pressões dentro das instituições. A subordinação hierárquica que existe cria canais, oficiais e não oficiais, de interferência que comprometem a autonomia científica. Mas essa realidade pode acabar. Tramita hoje no Senado Federal uma Proposta de Emenda Constitucional que busca garantir a independência da Polícia Científica. Esta proposta, que deveria ser vista apenas pelo lado técnico-jurídico, está sendo tratada como jogo político, sem considerar seu impacto fundamental na qualidade da justiça oferecida a todos nós.
A autonomia dos peritos não é uma questão corporativa ou ideológica – é uma necessidade técnica para que o sistema de justiça seja confiável. É uma garantia fundamental para o cumprimento dos Direitos Humanos. É o compromisso do Estado com a verdade dos fatos, base indispensável para qualquer sistema de justiça que se pretenda legítimo.
O caso Herzog deve marcar um ponto importante na história da perícia criminal brasileira. Cinquenta anos depois, precisamos tirar desse episódio trágico uma lição fundamental: a verdade científica não pode estar subordinada a interesses políticos ou institucionais.
Vladimir Herzog foi torturado e assassinado, e por quase quatro décadas a perícia oficial sustentou uma mentira. Quantos outros casos continuam obscuros pela falta de autonomia pericial? Quantas verdades seguem enterradas sob laudos comprometidos?
No cinquentenário da morte de Herzog, honremos sua memória lutando por uma perícia criminal verdadeiramente independente, capaz de resistir a pressões e falar apenas a linguagem da ciência e da verdade. Porque sem perícia independente, não há verdade. E sem verdade, não existe justiça possível.