NOTA DE REPÚDIO


NOTA DE REPÚDIO

 

Não é novidade que autoridades representantes da Polícia Civil, notoriamente da carreira de delegado de polícia, demonstram insatisfação com a desvinculação da Superintendência da Polícia Técnico Científica. São constantes as tentativas de reintegrar o órgão de excelência pericial, independente, técnico, científico e admirado pela população a que serve, aos caprichos investigativos que nem sempre coadunam com o compromisso maior da justiça: a busca da verdade.

Em recente nota conjunta (“Viabilidade: Policia Civil na Secretaria de Justiça”, no que se refere à Policia Científica), a Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo (ADPESP) e o Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo (SINDPESP) mais uma vez demonstram patentemente o desconhecimento acerca da necessidade de independência dos órgãos periciais da estrutura policial civil.

Tal conduta não é novidade, pois desde a Lei Complementar no 756/1994 e do Decreto no 42.847/1998, citadas entidades vem tentando o descalabro de subordinar a prova material, originária da técnica científica, aos desmandos de operadores de polícia.

Ao longo dos 20 anos da Superintendência da Polícia Técnico Científica (SPTC) independente, as iniciativas variaram em forma: desde de ações diretas de inconstitucionalidades à proposta de emenda à Constituição Bandeirante. A mais recente, antes da excrescência que por ora se lê na citada nota, foi a PEC 07/2015 de autoria do deputado delegado Olim, que extinguiria a SPTC, mas que, frente à inteligência dos outros representantes da Assembleia Legislativa de São Paulo, não prosperou. Já era esperado, vez que a própria ALESP já se manifestou favorável à emancipação da SPTC em parecer datado de 2014.

Agora a inovação é mais do que mudar a Polícia Civil de secretaria de governo. É subordinar a consagrada Perícia paulista à Polícia Civil, a revelia da Lei Federal no 12.030/2009 e das diversas recomendações paulistas, nacionais e internacionais, Como veremos a seguir apresentado histórica e logicamente.

Destarte, apontam o inicio da carreira nos moldes atuais por meio de lei do século XI (Lei no 261/1841) e sugerem este ser o subsídio histórico para que tudo e todos subordinem-se a tal carreira, em detrimento de justificativa mais nobre. Ora, muito antes da nação brasileira, Carlos V já previa no Código Criminal Carolino, datado de 1532, a necessidade de perito para interpretar vestígios, endereçando seus apontamentos ao julgador (hoje um Juiz de Direito), não a um intermediário.

O Código de Processo Penal em vigor no Brasil (Decreto-Lei no 3689/1941 e alterações) tanto recepcionou a inovação carolina, aceita e empregada em todo o mundo, que posicionou o Perito Criminal como auxiliar da justiça, estendendo aos peritos o disposto sobre a suspeição dos juízes e a disciplina judiciária. É um giro no qual se faz questionar quem deveria se vincular ao Poder Judiciário ou a uma secretaria de justiça: um órgão inquisitorial como a Polícia Civil ou um órgão pericial e imparcial como a Superintendência da Polícia Técnico Científica?

Sob a ótica racional e legal, aqueles que propõe a subordinação da Polícia Civil à Secretaria de Justiça e acenam a submissão da perícia ao citado órgão policial, com o devido respeito, só podem ter se equivocado nesta interpretação. Isto, pois, a Constituição Federal Brasileira em vigor prevê a Polícia Civil como órgão de Segurança Pública em seu artigo 144. Em âmbito bandeirante, o caput do art. 1o da Lei Complementar 756/1994 prevê que a SPTC é “órgão técnico-científico auxiliar da atividade de polícia judiciária e do sistema judiciário”. Ora, como pode um órgão auxiliar a polícia judiciária e o Poder Judiciário ser subordinado à primeira?

Em campo federal, a Lei Federal 12.030 de 12 de setembro de 2009 traz, em seu artigo 2o, que “No exercício da atividade de perícia oficial de natureza criminal, é assegurado autonomia técnica, científica e funcional, exigido concurso público, com formação acadêmica específica, para o provimento do cargo de perito oficial”. Logo, diante de tal legislação é natural que a Superintendência da Polícia Técnico-Científica seja um órgão apartado da Polícia Civil e, coerentemente, separa peritos de natureza criminal. Tal constatação também é corroborada pela interpretação do artigo 5o do mesmo diploma legal citado, in verbis,

 

“Art. 5o - Observado o disposto na legislação específica de cada ente a que o perito se encontra vinculado, são peritos de natureza criminal os peritos criminais, peritos médico-legistas e peritos odontolegistas com formação superior específica detalhada em regulamento, de acordo com a necessidade de cada órgão e por área de atuação profissional.”

 

Não é demais lembrar que a desvinculação dos órgãos periciais é defendida pela Organização das Nações Unidas (ONU). Em visitas dos auditores da ONU ao Brasil, foi detectado que os peritos oficiais deveriam receber garantias especiais para que pudessem exercer suas atividades com imparcialidade. No mesmo diapasão, em 2004, a Anistia Internacional indicou 12 passos para que o Brasil pudesse extinguir a tortura provocada por agentes do Estado. Na décima recomendação consta:

 

“Estabelecer unidades de perícias forenses totalmente independentes e a dar aos suspeitos pronto acesso a peritos médicos independentes, especialmente em casos de alegação ou suspeita de casos de tortura ou mau tratamento”.

 

Salientando apontamentos de órgãos internacionais, pode parecer que estamos falando de uma realidade longe da brasileira e, consequentemente, da paulista. Mas não é por acaso que a perícia tem uma estrutura independente na Europa, quando consideramos os altos índices de resolução criminal. Nos Estados Unidos e na América do Sul, essa autonomia acontece gradualmente. Algumas das estruturas de segurança pública desses países são, no mínimo, doze vezes mais eficazes que a brasileira.

Inobstante, a maior demonstração de que o Brasil segue este caminho é o fato de a maioria dos Estados brasileiros já contarem com autonomia de órgãos periciais em algum nível. Tal iniciativa é recepcionada pelos esforços do Ministério de Justiça, conforme consta nos relatórios do Conselho Nacional de Segurança Pública (vide Grupo de Trabalho para implementar a autonomia das perícias nos estados) e Secretaria Nacional de Segurança Pública. De acordo com o relatório intitulado “Diagnóstico da Perícia Criminal no Brasil”, expedido em 2011 pela SENASP/MJ, em dezesseis das vinte e sete unidades da federação os órgãos de perícia criminal são vinculados diretamente à Secretaria de Segurança Pública. Mais recentemente, a perícia do Estado do Amazonas também conquistou tal independência, de forma que, atualmente, apenas dez Estados a perícia ainda integra a estrutura da Polícia Civil.

Além do exposto, a desvinculação da SPTC é referendada pelo Tribunal de Contas do Estado de São Paulo e pelo relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV). O primeiro recomenda que se “Realize estudo para a criação de Corregedoria e Escola de aperfeiçoamento próprias da SPTC, assim como ocorre com a Polícia Civil”, ressaltando a independência do órgão de perícias criminais paulista (vide Relatório das Contas Anuais do Governador do Estado de São Paulo, TC-01466/026/13, folha 412). O segundo corrobora com o já exposto, recomendando a “Desvinculação dos institutos médicos legais, bem como dos órgãos de perícia criminal, das secretarias de segurança pública e das polícias civis” (vide Volume I, página 968, item [10] do Relatório da CNV).

Pelos justos e coerentes fitos expostos, reiteramos o repúdio à nota da ADPESP e SINDPESP. Pois trata-se de mais uma tentativa de aniquilar a independência na produção da prova pericial, a qual de forma isenta, buscam, reconhecem, analisam e asseguram a prova material, garantindo o respeito a produção de uma prova isenta de vícios. O compromisso da perícia criminal paulista é com a verdade, com justiça e com os Direitos Humanos, não com o interesse classista daqueles que querem a extinção da imparcialidade.

 

Eduardo Becker Tagliarini                                              Claudemir Rodrigues Dias Filho
Presidente do Sinpcresp                                                Secretário Geral do Sinpcresp

 

Publicação: "VIABILIDADE:POLÍCIA CIVIL NA SECRETARIA DE JUSTIÇA"

 

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